José Carlos Carvalho: «Nunca pensei desistir de ser bombeiro»

José Carlos Carvalho é bombeiro desde os 14 anos DR
A caminho de mais uma missão DR

José Carlos Carvalho é o comandante da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Algés. Desde os 14 anos que mantém fortíssima ligação à corporação, era ainda criança quando abraçou a causa que muito admira. Em entrevista ao Notícias de Oeiras, o comandante Carvalho abriu o coração e falou de várias experiências vividas ao serviço dos bombeiros. Apanhou grandes sustos, fala com reconhecimento do apoio dado pela Câmara de Oeiras à corporação, sente-se um homem honrado, ressalva o papel do profissionalismo no universo dos bombeiros, entre muitos outros temas.  

– Teve episódios marcantes na vida de bombeiro?

– Sim, sem dúvida! Estive no incêndio do Chiado, em Pedrogão Grande, no Algarve. Mas o pior foram dois acidentes muito graves. Em 2021 sofri um acidente no Algarve que me obrigou a estar quatro meses de baixa. Estas marcas que tenho nas mãos, tenho-as devido às queimadoras, aqui nas mãos, nos braços, na cara, tive mesmo de ser helitransportado. Destrui-se um carro, o carro ficou lá. Eu também ia lá ficando mas consegui sair. Como aconteceu? Estava a fazer o apoio a uma equipa que estava no combate a um incêndio, consegui que a equipa saísse mas eu consegui com grande dificuldade.

– Houve mais sustos?

– Sim, em 2013, em Montejunto, tive uma coisa parecida mas mais suave.

– Com tantos sustos continua enfrentar o fogo. Onde vai buscar a coragem?

– Não sei… a mim próprio… está-me no sangue

– Como recuperou psicologicamente desse acidente?

– Não há heróis, há coisas que ficam na cabeça, que precisam de resposta e, para mim, a resposta tem de ser dada no terreno. Tenho de voltar ao terreno para saber se tenho condições para continuar… tenho lucidez suficiente para saber se tenho condições para continuar e tenho mesmo! Apesar dos acidentes, quando volto ao terreno, digo para comigo mesmo que posso continuar. E penso, «isto pode voltar a acontecer mas não há-de ser nada».

– Quanto tempo esteve sem voltar ao terreno?

– Cinco meses. Mas fui muito teimoso, assim que comecei a ficar bom quis logo regressar ao ativo. Todos os bombeiros têm aquele dia em que dizem, «Épa, isto hoje foi complicado», mas depois passa e voltamos a estar prontos para outra.

– Foi compensado pelo Estado?

– Foi muito agradável receber um telefonema do nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa…

– Mas foi compensado?

-…

– Algum dia pensou desistir da carreira de bombeiro?  

– Não, nunca na minha vida de bombeiro pensei em desistir, nunca pensei em atirar a toalha ao chão… No ano seguinte a esse acidente estava lá outra vez. É aquela máxima, no início estranha-se mas depois entranha-se.

«Sinto-me honrado por ser bombeiro»

– Mudando de assunto, como se sente na função de comandante dos bombeiros de Algés?

– Honrado! É uma honra tremenda desempenhar as funções máximas no corpo de bombeiros. Somos uma equipa de três homens no comando e temos feito um trabalho muito bom. É gratificante que o meu Corpo de Bombeiros tenha evoluído técnica e operacionalmente, deixa-me feliz. Formamos um corpo de bombeiros dotado de conhecimento. Os meus homens estão sempre prontos a receber mais conhecimento, mais treino.

– A equipa funciona bem?

– É um Corpo de Bombeiros que, em caso de necessidade, os meus homens dizem presente, sem exceção. Chegamos a estar horas para chegar a casa, não temos horas para largar o que estamos a fazer, não há horas para dormir. É de uma entrega total, é duro mas é muito gratificante para quem está à frente do corpo de bombeiros. Estamos sempre a pensar em preparar o futuro mais e melhor. Na altura de transmitir os meus conhecimentos sinto-me o paizinho dos meus homens. Tem de ser assim e nunca me arrependo.

Isaltino Morais - Presidente da CM Oeiras
José Carlos Carvalho enaltece o apoio que a Câmara, presidida por Isaltino Morais, tem oferecido a Algés DR

«Câmara de Oeiras é um excelente parceiro»

– Têm falta de algum tipo de apoio?

– Bom, vou ser muito honesto, a Câmara de Oeiras é um excelente parceiro, não há como dizer que não o é. Carências todas as corporações as têm. Por exemplo, sabe quanto custa um carro para combater incêndios urbanos? À volta de 400 mil euros. É impossível uma associação ter esse valor, se não fosse a ajuda da câmara seria impossível termos esse tipo de carro.

– E se não fosse o apoio da câmara como seria?

– O poder central deve passar para o poder local a responsabilidade dos bombeiros. Não sei se é passado algum cheque (sorrisos). Só o poder local é que pode responder a essa questão (sorrisos). Defendo que o poder local é que deveria ter a responsabilidade ou a «pasta» de ajudar os bombeiros. Está mais por dentro dos problemas locais, da realidade local, existe uma maior proximidade, sem dúvida. A partir daí, é o poder local que deve canalizar as verbas.

– E têm apoios?

– Temos vivido muito com o apoio da Câmara Municipal de Oeiras. O socorro ainda não é auto-sustentado. Aquilo que nós fazemos não dá para produzir riqueza. Nem de perto nem de longe. Vamos para incêndios, acidentes, mas não somos ressarcidos.

– Como conseguem colmatar esse facto?

– Através de um subsídio que a câmara de Oeiras nos atribui mensalmente. A câmara é, de facto, o nosso grande parceiro. Nos últimos dois anos foram criadas duas equipas de intervenção permanente que vieram facilitar bastante esta capacidade de resposta ao socorro.

– Muito se tem falado dos ordenados dos bombeiros. Os Bombeiros de Algés são bem remunerados?

– Bom, aqui em Algés os nossos homens recebem pouco acima do ordenado mínimo nacional mais um subsídio de 25% do ordenado. Ou seja, levam para casa cerca de 1000 euros. Não somos os que pagamos melhor mas, certamente, não somos os que pagamos pior…

– Além do apoio da câmara de onde vêm receitas?    

– Bom, por exemplo, quando faço um transporte daqui de Algés para o Hospital S. Francisco Xavier, é necessário um veículo, gasóleo, dois técnicos especializados. Quer eu gaste uma ligadura, quer gaste 20, o estado paga 23 euros. Quer eu esteja uma hora ou cinco minutos é sempre pago 23 euros. Quantas emergências médicas é preciso fazer por dia para pagar o vencimento desses dois técnicos? Não é rentável. Nós quando levamos um doente de Algés à Fisiopiramide recebemos 7.5 euros. Não é rentável… não sendo rentável como é que sobrevivemos? Se se pagasse o que é justo era diferente. Por exemplo, uma paragem cardiorrespiratória custa-nos 90 euros. Claro que não vamos deixar de fazer, não está na nossa génese deixar as coisas por fazer. Se nos pagassem esses serviços como deveria ser, teríamos uma fonte de receita e aquilo que recebemos não o é…

– Quantos carros de apoio aos doentes tem a Corporação?

– Um, só temos um veículo para o serviço de transporte de doentes. Só seria lucrativo se fossemos fazer transporte de doentes fora de Algés mas isso não é viável, primeiro estão as pessoas daqui apesar de nos darem prejuízo. Não podemos deixar de fazer este tipo de transporte, não queremos que as pessoas fiquem sem fazer os seus tratamentos, as pessoas têm que ter qualidade de vida e este transporte é-lhes muito importante, muito mesmo. Com tudo isto, temos de ser subsídio-dependentes, andar de mão estendida para conseguirmos dar a volta ao texto.

«Quotização e aulas de formação sempre ajudam»

– E outras fontes de receita?

– A quotização, aulas de formação para empresas. Quem dá a formação? Temos alguns bombeiros que foram instruídos para isso. Têm competência pedagógicas de formador. E não me canso de dizer que se não fosse a Câmara de Oeiras não sei como seria… no fundo, penso que os bombeiros vão acabar por ser geridos a nível municipal.

– Como nasceu a paixão pelos bombeiros?

– Entrei para os bombeiros de Algés em 1984, tinha 14 anos. Foi um primo meu que me lançou o desafio para eu vir para os bombeiros. Não havia oferta de empregos para os jovens como acontece nos dias de hoje. Algés era completamente diferente daquilo que é hoje, tinha uma série de bairros degradados. Acabei por aceitar o desafio e já lá vão 40 anos.

– Estava ciente daquilo que viria encontrar?

– Não. Admirava o trabalho dos bombeiros, morava ali ao pé, e via o desempenho deles. Muito diferente daquilo que é hoje. Aceitei o desafio. Como foi? Bom, primeiro estranha-se e depois entranha-se. Depois fica difícil de largar. Sou bombeiro profissional aqui em Algés. Sou funcionário da Associação Humanitário dos Bombeiros Voluntários de Algés. Sou comandante com mandato de cinco anos. Já sou elemento de comando há oito anos, algo que muito me orgulha numa casa que me viu nasceu e crescer.

Festa em Algés em dia de comemorar mais um aniversário DR

«Impossível viver só de voluntariado»

– Nós aqui em Algés. Somos uma Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários, foi criada há 122 anos por um grupo de sócios em boa hora. Até à década de finais de 80 início de 90 vivia-se muito à custa do voluntariado. Depois começo a perceber-se que não era possível o Corpo de Bombeiros viverem só de voluntariado. Houve, então, a necessidade de se passar para uma coisa que ainda hoje não tem nome. Começou a ser preciso funcionários para desempenharem as funções de bombeiro. O socorro a isto obrigou. A exigência da sociedade, a evolução da sociedade, levou os bombeiros a irem por este caminho. Hoje ninguém pode ficar sem socorro. Surgiu, então, a criação de postos de trabalho. Temos de ter uma fonte de rendimento lá fora. O quadro do corpo de bombeiros de Algés é composto por 50% de funcionários.

– Antes de ser bombeiro o que fazia?

– Trabalhei na indústria hoteleira até ir para a tropa, quando saí pedi ao meu pai se podia ficar um mês de férias. O meu pai disse-me logo que sim… A verdade é que comecei a ficar farto de férias e fui trabalhar numa empresa de limpezas onde cheguei a supervisor. Tive cerca de 300 pessoas a meu cargo mas acabei por sair… acabei por ir para a construção naval como bombeiro… daí dei o passo para o quartel de Algés. Vim chefiar a primeira equipa de socorro permanente aqui em Algés.

– Como encara o profissionalismo no universo dos bombeiros?

– A minha grande paixão é ser voluntário, ajudar sem estar à espera do que quer que seja. Entrei para os voluntários com 14 anos, mas depois apercebemo-nos que isso é romantismo… uma pessoa precisa de criar riqueza para se autossustentar.

– Qualquer pessoa pode ser bombeira?

– Bom, hoje os bombeiros têm de fazer formação para sair para a rua e isso só acontece depois dos 18 anos. E outro ponto importante, foi mesmo obrigatório voltarmo-nos para o profissionalismo. Só com voluntariado não era possível acorrer a todos os problemas. Foi mesmo preciso criar profissionais nas associações.  Hoje, da maneira que a sociedade evoluiu, fomos obrigados a dar esse passo.

– Há condições para um bombeiro ser bombeiro a 100%?

– Sou comandante do corpo de bombeiros, devo ter no currículo mais de 1000 ações de formação. Isto é impossível para uma pessoa que não esteja disponível a 100%. Só com a profissionalização isso é possível. Por exemplo, ir cinco semanas à Lousã para fazer uma formação é complicadíssimo se não formos profissionais. É precisos criar condições para os bombeiros darem resposta capaz ao socorro, tem de ser uma resposta muito capacitada, exigente.

– É urgente profissionalizar os bombeiros?

– Sim, por exemplo, quando estão à espera dos bombeiros, as pessoas esperam sempre que apareça alguém com capacidade para tomar conta da ocorrência, é preciso que apareça uma pessoa que seja a solução para o problema. Isso só acontece com a profissionalização dos corpos de bombeiros.

José Carlos Carvalho participou no combate ao incêndio do Chiado em 1988 Imagem: DR

-Fechava as portas ao voluntariado?

– Não, nem pensar! Há pessoas com muita vontade de querer ajudar que ainda podem ser muito úteis. É importante que o voluntariado continue a existir mas num outro âmbito. Nunca como segunda linha mas como reforço. A primeira necessidade deve ser atribuída a um profissional. Se formos profissionalizar temos de ser exigentes com os futuros bombeiros.

– Qualquer pessoa pode ser bombeira?

– Bom, não, mas temos várias áreas de atuação das mais variadas situações.

– Os bombeiros são muito procurados?

– Sim, muito mesmo, por exemplo a primeira reação das pessoas quando estão em apuros é dizerem «liga aí para os bombeiros».

– Sente-se recompensado por ter abraçado o corpo de bombeiros?

– Hoje, se sou o Homem que sou, devo-o em muito boa parte aos bombeiros. Grande parte da minha aprendizagem foi aqui, se dúvida. Aqui aprendi a querer mais e mais… Estar nos bombeiros deu-me sentido à vida. Sou profissional da casa há 12 anos.